Esses dias recebi no meu escritório, um andarilho. Posso dizer que foi uma presença ilustre pois foram duas semanas de muita reflexão na minha vida, sem mesmo ele se dar conta.
Ao chegar pela manhã, lá estava ele deitado, pés imundos, roupa com cheiro de laranja podre. Mas por trás na barba branquinha e rala, saia um sorriso de bom dia. Parei uma manhã e o questionei se precisava de algo, e ele já surpreendeu: "Não, já almocei, jantei, comi meu pãozinho agora cedo. O meu problema, de estar nessa "fossa" é Praga de Sogra, e isso não tem cura". Demos risada, e descobri por trás daquele "isolado na selva de pedras", que só temos a agradecer a tudo, todo dia de nossas vidas e aprender a ver o próximo com mais amor e compaixão.
Um dia, perguntei seu nome, ele me disse: "olha, gostaria de chamar Roberto Carlos ou Ronaldo. Nomes assim, fortes... mas chamo Benedito, e não gosto do meu nome". E eu sem titubear, já rebati: " Hei seu Benedito, esse é um bom nome, apesar de não ser de jogador de futebol. É um nome forte..." e ele já retrucou: " Eu fui jogador de futebol, em um grande time, e hoje meu filho joga em Portugal, futebol de salão. Meu outro filho tem um supermercado em Londrina. Minha ex-esposa casou com um banqueiro, do banco que trabalhei por anos como segurança... a vida não é um vai e vem sabe, é mais vai do que vem. Muitas perdas eu tive".
Lá estava um ser humano, em condições desumanas, com seus pensamentos soltos, ligado ao vício da bebida, querendo apenas um pouco de atenção. Levei a ele um "kit" de sabonete, escova de dentes, cortador de unha, cobertor, roupas, etc. Dei um boné com assinatura do Daniel (cantor) e ele ficou com brilho nos olhos por algo tão simples (para nós). Passou a dizer que sou irmã do Daniel, e que a família do Daniel (Brotas-SP) sempre foi muito generosa com pessoas de rua. Enfim, entreguei a ele e alertei " agora, vou pedir um favor ao senhor: tome um bom banho lá no chuveiro naquele posto, limpe a alma, e tenha força de vontade... você pode mudar essa situação, basta querer. O senhor não quer voltar a Londrina? Tome um banho, pegue uma carona, ou posso levá-lo a rodoviária, comprar uma passagem... ânimo!". Ele me olhou, por alguns longos segundos, sorriu e disse: "Moça, eu tenho dinheiro. Não precisa me levar na rodoviária não, eu não gosto de andar de carro... prefiro ir a pé, gosto de andar e ver o paisagismo". Fiquei surpresa, e questionei o que o impedia então, e ele: " Posso ir, mas tenho só medo de voltar. Fui diretor do sindicato lá, já viu né, isso cria-se inimigos". Respeitei os pensamentos soltos dele.
Um dia, ouvi uma batida forte na porta do escritório, pedi pra entrar, e assustada me deparei com ele tremendo, sem camiseta, pálido e suando. Seu corpo de 65 anos estava doente. Me entregou um pacotinho e pediu para guardar o dinheiro dele (R$ 80,00), pois estava indo ao hospital e os enfermeiros sempre levam o dinheiro. Conversei com dois colegas que trabalham nos escritórios vizinhos, e decidiram: vamos ajuda-lo a tomar banho! Foi engraçado ver Sr. Benedito resmungando, e tremendo, enquanto o Junior e o Rodolfo levavam sabonete, toalha e seguiram pro chuveiro. A ambulancia veio, um dia se passou, lá veio ele bater na porta do escritório, com aparência melhor. Agradeceu a nós pela ajuda, disse que decidiu se internar numa clínica indicada pelo Hospital. Relatou que o médico aconselhou a melhorar a alimentação, comer mais salada e vitamina C. Agora, pense: um médico dizer a um andarilho pra melhorar alimentação, comer mais salada, vitamina C?? O próprio andarilho contou em tom de ironia sobre isso. Já o vi comendo resto de marmitex, como melhorar a alimentação nessas condições?
E acreditem pessoal, do mesmo modo que Benedito apareceu no meu trem, desceu em alguma estação. Sem mais, nem menos, partiu pelo mundo afora. Espero de coração que ele possa ter conquistado algo melhor em sua vida. Assim como desejo que os espíritos de luz tragam aconchego e calor a todos aqueles que passam por isso e não tem quem estenda a mão. Se cada um fizesse sua parte, teriamos sim condições de um mundo melhor. Tire a venda dos olhos, não finja que não é com você, não são seres invisíveis, e sim seres humanos, que muitas vezes não precisam de muito, apenas serem ouvidos.
Beijo na ponta do nariz,
Até a próxima!
Ana Laura
* EU INDICO!
O livro " O Futuro da Humanidade" reflete essas e outras situações absurdas que a medicina-doente instala na sociedade. Pessoas saem formadas para cuidar de doenças sem interessarem com o sentimento do ser humano. Esse livro representa a luta contra as injustiças e a força de um jovem médico corajoso, dotado de uma imensa paixão pela vida e pelas pessoas.
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